O bem-amado e o seu projeto de governo



Hey, sonhadores! 


Como foi o Carnaval de vocês? Espero que tenham curtido e aproveitado bastante. Levando esse clima festivo em consideração, neste post, recomendo uma peça divertidíssima. Escrita em 1962 e encenada pela primeira vez em 1969, O bem-amado é o meu primeiro contato com o escritor Dias Gomes. Ele é autor de O berço do herói/Roque Santeiro (teatro e telenovela, respectivamente), O pagador de promessas (teatro e filme), Saramandaia (telenovela), entre outras obras.

Essa peça é uma sátira político-social que conta a história do projeto de governo municipal de Odorico Paraguaçu: a construção e, principalmente, a inauguração do cemitério de Sucupira, pois é o seu legado para a cidade. A crítica está centrada nesse político demagogo que quer a todo custo enterrar alguém no cemitério.



Quando alguém morre, o finado deve ser carregado três léguas de distância até a cidade vizinha, porque em Sucupira não tem cemitério. E é na primeira cena (um defunto sendo carregado para o município mais próximo) que Odorico aproveita a oportunidade para falar:


“Quem ama sua terra deseja nela descansar. Aqui, nesta cidade infeliz, ninguém pode realizar esse sonho, ninguém pode dormir o sono eterno no seio da terra em que nasceu. Isto está direito, minha gente? (...) Vejam este pobre homem: viveu quase oitenta anos neste lugar. Aqui nasceu, trabalhou, teve filhos, aqui terminou seus dias. Nunca se afastou daqui. Agora em estado de defuntice compulsória, é obrigado a emigrar; pegam seu corpo e vão sepultar em terra estranha, no meio de gente estranha. Poderá ele dormir tranquilamente o sono eterno? Poderá sua alma alcançar a paz?” (p. 21)

  

E completa:


“Meus conterrâneos: vim de branco para ser mais claro. Esta cidade precisa ter um cemitério. (...) E haveremos de tê-lo. Cidadãos sucupiranos! Se eleito nas próximas eleições, meu primeiro ato como prefeito será ordenar a construção imediata do cemitério municipal. Bom governante, minha gente, é aquele que governa com o pé no presente e o olho no futuro. E o futuro de todos nós é o campo-santo. É preciso garantir o depois-de-amanhã, para ter paz e tranquilidade no agora. Quem é que pode viver em paz mormentemente sabendo que, depois de morto, defunto, vai ter que defuntar três léguas pra ser enterrado?” (p. 22-24)

 

Ele já tinha apoio de alguns cidadãos, mas por conta desse discurso consegue outros eleitores. Depois de ganhar como prefeito, declara:


“Povo sucupirano! Agoramente já investido no cargo de Prefeito, aqui estou para receber a confirmação, ratificação, a autenticação e por que não dizer a sagração do povo que me elegeu. Eu prometi que meu primeiro ato como prefeito seria ordenar a construção do cemitério. Botando de lado os entretantos e partindo pros finalmente, é uma alegria poder anunciar que prafrentemente vocês já poderão morrer descansados, tranquilos e desconstrangidos, na certeza de que vão ser sepultados aqui mesmo, nesta terra morna e cheirosa de Sucupira. E quem votou em mim, basta dizer isso ao padre na hora da extrema-unção, que tem enterro e cova de graça, conforme o prometido.” (p. 30-31)

 

No início da leitura, já percebemos o tom de O bem-amado, mas é após a eleição que o livro fica mais engraçado. Odorico Paraguaçu cumpre sua promessa de construir o cemitério? Sim, é a única coisa que se preocupa. Além disso, quer inaugurar o cemitério com o enterro de algum cidadão, porém, depois de eleito, ninguém morre para inaugurá-lo e isso o deixa com muita raiva.

O cemitério é, em sua visão, para deixar um legado e o seu nome marcado na história de Sucupira. Ressalto que todo investimento do município e a única obsessão de Odorico é o cemitério e, por conta disso, conquista a cada ano mais eleitores indignados. Consequentemente, sua oposição Neco Pedreira (jornalista e dono do jornal A Trombeta) se fortalece ao expor as corrupções no mandato de Paraguaçu.

Para Odorico, é de suma importância que alguém morra em Sucupira para que seja inaugurada a sua grande obra e que ele seja lembrado como um dos prefeitos que mais fez por seu município. Por isso, não mede esforços para ter um morto na cidade e afirma:


Em política, Dona Dorotéa, os finalmentes justificam os não-obstantes.” (p. 77)

 

Como um dos seus planos, resolve chamar o ex-cangaceiro Zeca Diabo (nascido e criado em Sucupira) com o pretexto de, na função de prefeito, perdoá-lo por ter matado uma família sucupirana anos antes. O verdadeiro motivo de Odorico por trás desse perdão é que Zeca Diabo mate alguém da cidade por qualquer desentendimento, mas o problema é que o ex-cangaceiro mantém sua promessa a Padim Pade Ciço de exercitar a paz todo dia, ou seja, de contar até 10 antes de matar um homem. Em outras palavras, todos os esforços de Paraguaçu são em vão.


Motivos para ler O bem-amado:

• as questões políticas — demagogia, corrupção, oposição;

• os discursos verborrágicos de Odorico;

• o duplo sentido de algumas frases;

• os planos (frustrados) de Odorico para ter um morto na cidade.

Tudo isso de forma leve e divertida. É importante sinalizar que, no final da história, é explicado o porquê Odorico Paraguaçu é chamado de bem-amado.


Ademais, existem duas adaptações televisivas homônimas dessa peça: (i) a novela da emissora Globo (1973) — disponível na Globo Play — e (ii) o filme de Guel Arraes (2010). A novela tem o próprio Dias Gomes no roteiro, só por isso acho tenho certeza de que vale a pena conferir. Ainda não assisti a nenhuma das duas adaptações, mas pretendo prafrentemente.

Posso afirmar que é uma obra não só atual mas também atemporal por conta das críticas sociopolíticas suscitadas no enredo. Como disse Isabella Lubrano (Ler Antes de Morrer): “essa é uma história que poderia se passar em qualquer cidade provinciana latino-americana”. O livro é curtinho, dividido em nove quadros e a leitura é fluida. Sem dúvida, é uma das peças mais divertidas que li e, por isso, escolhi O bem-amado como recomendação de leitura pós-carnaval.

Vocês já assistiram ou leram O bem-amado? O que acharam? Se não conheciam essa obra, pretendem ler ou assistir a uma das adaptações? Comentem para trocarmos ideias. Um abraço e até o próximo post! o/

 


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