Hey, sonhadores!
O post de hoje é uma
reflexão de um trecho de um dos meus livros nacionais favoritos. Espero que
gostem e que tenham uma ótima leitura!
Ideias
aritméticas
Não digo o mais, que foi
muito. Nem ele sabia só elogiar e pensar, sabia também calcular depressa e bem.
Era das cabeças aritméticas de Holmes (2 + 2 = 4)¹. Não se imagina a facilidade
com que ele somava ou multiplicava de cor. A divisão, que foi sempre uma das
operações difíceis para mim, era para ele como nada: cerrava um pouco os olhos,
voltados para cima, e sussurrava as denominações dos algarismos: estava pronto.
Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocação era tal que o fazia amar os
próprios sinais das somas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo
poucos, eram muito mais conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto.
─
Há letras inúteis e letras dispensáveis, dizia ele. Que serviço diverso prestam
o d e o t? Têm quase o mesmo som. O mesmo digo do b e
do p, o mesmo do s, do c e do z, o mesmo do k e
do g, etc. São trapalhices caligráficas. Veja os algarismos: não há dois
que façam o mesmo ofício; 4 é 4, e 7 é 7. E admire a beleza com que um 4 e um 7
formam esta coisa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique
por igual número, dá 484, e assim por diante. Mas onde a perfeição é maior é no
emprego do zero. O valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o
ofício deste sinal negativo é justamente aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe
dois 00, é 500. Assim, o que não vale nada faz valer muito, coisa que não fazem
as letras dobradas, pois tanto eu aprovo com um p como com
dois pp.
Criado na ortografia de
meus pais, custava-me a ouvir tais blasfêmias, mas não ousava refutá-lo. Contudo,
um dia, proferi algumas palavras de defesa, ao que ele respondeu que era um
preconceito, e acrescentou que as ideias aritméticas podiam ir ao infinito, com
a vantagem que eram mais fáceis de menear. Assim que, eu não era capaz de
resolver de momento um problema filosófico ou linguístico, ao passo que ele
podia somar, em três minutos quaisquer quantias.
─
Por exemplo… dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu não saiba nem
possa saber antes… olhe, dê-me o número das casas de sua mãe e os aluguéis de
cada uma; e se eu não disser a soma total em dois, em um minuto, enforque-me!
Aceitei a aposta, e na
semana seguinte levei-lhe escritos em um papel os algarismos das casas e dos
aluguéis. Escobar pegou no papel, passou-os pelos olhos a fim de os decorar, e
enquanto eu fitava o relógio, ele erguia as pupilas, cerrava as pálpebras, e
sussurrava… Oh! o vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio minuto
bradava-me:
─
Dá tudo 1:070$000 mensais.
Fiquei pasmado. Considera
que eram não menos de nove casas, e que os aluguéis variavam de uma para outra,
indo de 70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu gastaria três ou quatro
minutos – e havia de ser no papel –, fê-lo Escobar de cor, brincando. Olhava-me
triunfalmente, e perguntava se não era exato. Eu, só por lhe mostrar que sim,
tirei do bolso o papelinho que levava com a soma total, e mostrei-lho; era
aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000².
─
Isto prova que as ideias aritméticas são mais simples, e portanto mais
naturais. A natureza é simples. A arte é atrapalhada.
Fiquei tão entusiasmado
com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no
pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles
não gostou.
─ A
modéstia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos; podem estimar-se com
moderação.
Escobar observou-me que os
outros e o padre falavam de inveja e propôs-me viver separados. Interrompi-o
dizendo que não; se era inveja, tanto pior para eles.
─
Quebremos-lhe a castanha na boca!
─
Mas…
─
Fiquemos ainda mais amigos até aqui.
Escobar apertou-me a mão
às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, decerto, se
não é efeito das longas horas que tenho estado a escrever sem parar.
Suspendamos a pena por alguns instantes.
Dom Casmurro (capítulo
XCIV), de Machado de Assis
Após a leitura desse
capítulo, vocês também acham que as ideias aritméticas são mais fáceis e que a
natureza é simples? Seguindo essa lógica do Escobar, reflitamos: será a vida
uma ideia aritmética e nós que complicamos? Ou a vida é complexa para fazermos essa
associação? Um abraço e até o próximo post! o/
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Notas:
¹ Faz referência ao médico
e escritor norte-americano Oliver Wendell Holmes. Holmes afirma, em um dos seus
ensaios reunidos sob o título O autocrata à mesa do café, que todo conhecimento
prático e econômico provém da fórmula 2 + 2 = 4.
² 1:070$000, 70$000 e
180$000 = lê-se, respectivamente, um conto e setenta mil-réis, setenta
mil-réis e cento e oitenta mil-réis.
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