Hey, sonhadores! ❤
Escrevi
o
texto abaixo no início da graduação (e lá se vão 8 anos) para
um trabalho que apresentei. Como não o publiquei, decidi
compartilhá-lo
aqui.
Porém
cabe ressaltar que ele foi escrito
no começo da minha
vida
acadêmica e,
por isso, não
vou mudar e/ou acrescentar nada
(perdoem-me
se as
ideias
estiverem
truncadas).
Para
esclarecimento, Pierre
Menard é um personagem fictício do conto Pierre
Menard, autor do Quixote
escrito por Jorge Luis Borges em 1994. Sem
mais delongas, vamos ao texto:
Neste
conto, o narrador faz uma breve biografia do escritor pós-simbolista
Pierre Menard e suas obras. Ele enumera alfabeticamente, em ordem
cronológica, uma lista de dezenove obras, que ele chama de “a obra
visível”. Nessa
lista contém: um soneto independente e um ciclo de sonetos dedicados
a Baronesa de Bacourt; cinco monografias; três artigos, sendo um
deles uma crítica a Paul Valéry; duas traduções; uma réplica; um
prefácio; uma obra sobre o problema de Aquiles e a tartaruga; uma
análise; uma transposição para versos alexandrinos, de um poema de
Valéry; um elogio à Condessa de Bagnoregio; e, por fim, uma lista
manuscrita de versos.
Mas
a obra principal de Menard, que o narrador a qualifica como talvez
a mais significativa de nosso tempo,
foi “escrever” Dom Quixote, porém
sem alterar uma sílaba. “Não queria apenas uma versão,
objetivava uma versão que ao mesmo tempo fosse literal também fosse
uma obra nova, sua.” (MONEGAL, 1980, p. 77)
Ele
adotou algumas estratégias para alcançar esse objetivo, como por
exemplo: conhecer o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear
contra os mouros ou os turcos, ser Miguel de Cervantes. De acordo com
o narrador, “o projeto era de antemão impossível, porém de todos
os meios impossíveis, este era o menos interessante que continuar
sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote mediante às suas próprias
experiências” (BORGES, 2001, p. 58). Menard confessa: “Meu projeto
não é essencialmente difícil (...) Bastar-me-ia ser imortal para
realizá-lo.” (BORGES, 2001, p. 58) Ele passa por algumas provas que
ele mesmo descreveu:
(...)
é indiscutível que meu problema é bastante mais difícil que o de
Cervantes. Meu complacente precursor não recusou a colaboração do
acaso: ia compondo a obra imortal um pouco à la diable, levado por
inércias da linguagem e da invenção. Contraí o misterioso dever
de reconstruir literalmente sua obra espontânea. Meu solitário jogo
está governado por duas leis polares. A primeira permite-me ensaiar
variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda obriga-me a
sacrificá-las ao texto original e a raciocinar de modo irrefutável
sobre essa aniquilação (...) Compor o Quixote em princípios do
séc. XVII era um empreendimento razoável, necessário, quem sabe
fatal; em princípios do XX, é quase impossível. Não transcorreram
em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre
eles, para mencionar um apenas: o próprio Quixote. (BORGES, 2001, p. 59)
Apesar
dos obstáculos, Menard consegue reproduzir exatamente um trecho do
capítulo IX, da primeira parte de Dom Quixote de Cervantes: “... a
verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das
ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente,
advertência do futuro.” (BORGES, 2001, p. 61)
A
partir desse
trecho, a narrativa chega ao seu ponto culminante onde o narrador faz
uma análise das diferenças que envolvem os dois textos. A primeira
diferença que encontra é que Cervantes faz um mero elogio retórico
da história. Já Menard, não define a história como indagação da
realidade, mas como sua origem. A verdade histórica para Menard, não
é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. A segunda
diferença é o contraste dos estilos. Menard usa o estilo
arcaizante, no fundo estrangeiro, enquanto Cervantes emprega com
desenvoltura o espanhol corrente de sua época. Menard assim escreve:
Pensar,
analisar, inventar não são atos anômalos, são a normal respiração
da inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função,
entesourar antigos e alheios pensamentos, recordar com incrédulo
estupor o que o doctor universalis pensou, é confessar nossa
languidez ou nossa barbárie. Todo homem deve ser capaz de todas as
ideias e suponho que no futuro o será. (BORGES, 2001, p. 63)
O
mais surpreendente dessa
ficção é a sua conclusão:
Menard
(talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte
fixa e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e
das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação infinita
incita-nos a percorrer a Odisseia como se fosse posterior à Eneida
(...) Essa técnica povoa de aventura os livros mais pacíficos.
Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de
Cristo, não é suficiente renovação desses tênues avisos
espirituais? (BORGES, 2001, p. 63)
Segundo
Campos (2008), uma das leituras possíveis do conto nos leva a crer
que Borges tem a intenção de evidenciar o leitor ocultando o autor,
mas não é somente um autor, porém três. Menard: um personagem-autor, que parte de uma obra 'visível', tem a intenção, desde logo 'invisível', de escrever o mesmo Dom Quixote de Cervantes. Cervantes: um autor-personagem, uma vez autor de Quixote, e três vezes personagem: dele mesmo, de Menard e de Borges. E, por fim, Borges: que dentro do conto não representa ninguém, mas fora dele toda a ideia do conto recai sobre ele, ou seja, está mais perto do leitor (da recepção); quanto mais se aproxima do leitor mais a presença do autor se torna forte.
Como diz Emir R. Monegal:
Borges
dissolve a noção de um autor original dentro da noção, mais
impessoal, da literatura. Ninguém é alguém. Acontece que as
últimas consequências desta teoria vão mais além da mera negação
da personalidade individual do autor. Uma poética da leitura, em vez
de uma poética da escritura, está implícita nessa negação.
Borges inverte aqui os termos habituais do debate literário: em vez
de apoiar-se na produção original da obra, remete à produção
posterior e sempre renovada do leitor. (...) é supérfluo indicar se
uma obra é ‘original’ ou ‘copiada’ de outra fonte. Toda
história, todo texto, é definitivamente original porque o ato de
produção não está na escritura, mas na leitura. (...) O sentido
dos livros não está no seu próprio texto, mas sim no texto que
cada leitor cria. (1980, p. 69)
Como
Monegal (1980) mostra nestes
trechos: “Borges anula a identidade individual” (p. 69), consequentemente, “o verdadeiro produtor de um texto não é o
autor, mas sim o leitor, todo o leitor é todos os autores. Todos
somos um.” (p. 72) Em outras palavras, o indivíduo está em constante mudança e, por conta disso, a leitura de uma mesma obra nunca será igual. O texto nunca se esgota, porque o leitor (a cada leitura) nunca é o mesmo.
Portanto, essa
ficção nos mostra que a realidade pode sim ser inventada, já que a
realidade é subjetiva. “Borges já demonstrou seu enfoque: todo
julgamento é relativo, e crítica é também uma atividade tão
imaginária quanto a ficção ou a poesia. Aqui está a semente
‘Pierre Menard’” (MONEGAL,1980, p. 80). Ou seja, ele mudou a forma
de pensar e de
escrever
do homem “liberando a literatura do preconceito biográfico de uma
luxuosa galeria de grandes autores, devolvendo à linguagem a sua
primazia” (MONEGAL, 1980, p. 72).
Referências:
BORGES,
Jorge Luis. Ficções.
São Paulo: Globo, 2001.
CAMPOS,
Alexandre Silveira. A
máscara vazia:
um comentário sobre Pierre Menard, autor del Quijote. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 90, nov. 2008.
MONEGAL,
Emir R. Borges:
uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva,1980.
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